sábado, 16 de julho de 2016

...minhas amigas, as fadas...


  "Ter amor por um cão é uma coisa escandalosa.
  Será impossível determinar com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrem resultam dos nossos sentimentos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de forças existentes entre os indivíduos.
  A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros.
  A nostalgia do Paraíso é o desejo que o homem tem de não ser homem.
  Como explicar que as menstruações de uma cadela despertassem em si uma tal ternura, quando até pela sua própria menstruação tinha repugnância? A resposta parece-me fácil: é que o cão nunca foi expulso do Paraíso. Karenine desconhece totalmente a dualidade do corpo e da alma e não sabe o que é ter repugnância. Por isso Tereza se sente tão bem e tão calma ao pé dele (...)
  Do caos profundo destas ideias, nasce no espírito de Tereza um pensamento blasfemo de que não consegue livrar-se: o amor que a une a Karenine é melhor do que o amor que existe entre ela e Tomas. Melhor, e não maior. Tereza não quer culpar nenhum dos dois, nem Tomas nem ela, não quer dizer que eles poderiam amar-se mais. Parece-lhe é que o casal humano foi criado de tal forma que o amor do homem e da mulher é à priori de uma natureza inferior áquela que pode ter (pelo menos na melhor das suas variantes) o amor entre o homem e o cão, essa estranha coisa da história do homem que o criador não previu.
  É um amor desinteressado: Tereza não quer nada de Karenine. Nem sequer exige que ele a ame. Nunca se atormentou com as perguntas que torturam os homens e as mulheres: gostará ele de mim? Já terá amado alguém mais do que me ama a mim? Amar-me-á mais do que eu o amo? Todas estas interrogações que questionam o amor, que o medem, que o perscrutam, o inspeccionam, não se arriscarão a matá-lo na casca? Se somos incapazes de amar, talvez seja por desejarmos ser amados, ou seja, por querermos alguma coisa do outro (o seu amor), em vez de chegarmos junto dele sem reivindicações, e não querermos senão a sua simples presença.
  E ainda há mais uma coisa: Tereza aceitou Karenine tal qual é, não tentou modificá-lo, deu a sua anuência prévia ao seu universo de cão, não quer confiscar-lho, não tem ciumes das suas tendências secretas. Se o educou, não foi com intenção de modificá-lo (como um homem sempre quer modificar a sua mulher e uma mulher o seu homem), mas simplesmente para lhe ensinar a língua elementar que havia de permitir-lhes compreenderem-se e viverem os dois juntos.
  E também: o seu amor pelo cão é um amor voluntário, ninguém a obrigou a isso. Tereza pensa uma vez mais na mãe, e tem muita pena dela: se a mãe fosse uma daquelas desconhecidas da aldeia, talvez a sua jovial grosseria lhe parecesse simpatia! Tereza sempre teve desde criança uma grande vergonha por a mãe ter ocupado os traços do seu rosto e confiscado o seu eu. E o pior é que o imperativo milenar que nos manda amar pai e mãe a forçava a aceitar essa ocupação, a chamar amor a essa agressão! A mãe não é culpada de Tereza ter rompido com ela. Não rompeu com a mãe por ela ser como era, mas por ser sua mãe.
  Mas sobretudo: nenhum ser humano pode presentear outro com um idílio. Só o animal pode fazê-lo porque não foi expulso do Paraíso. O amor entre o homem e o cão é idílico. É um amor sem conflitos, sem cenas dilacerantes, sem evolução. Karenine ia traçando em torno de Tereza e Tomas o circulo da sua vida fundada na repetição e também esperaria o mesmo deles.
  Nesta frase encontra-se resumida toda a maldição do homem. O tempo humano não anda em circulo, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição."

in "A Insustentável Leveza do Ser" de Milan Kundera